terça-feira, 25 de outubro de 2005

"Quase morri de frio
por amor a quem não existia
Quase me perdi
a correr atrás de sombras

(pelo que não é
trouxe lágrimas ao reino)

Se hoje guardo luto
é pela morte de alguém
que existiu tão somente para mim

(pela mentira que foste
franzo meu cenho e
calo meu sorriso)

Mas assim que a chuva
lave as águas que chorei
porei minha alma
a quarar no sol
e hei de esquecer
que nunca, nesta vida
eu te conheci"

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

''há estilhaços de cacos
nos meus pés cansados
há um acúmulo de pedras
sem igual nos meus caminhos

(mas de noite
me guardas em teus braços
e eu adormeço)"

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

O Menino que Carregava Água na Peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos

Manoel de Barros